UMhistórias de recuperação de vícios servem a um propósito no mundo real, forjando um ponto de conexão entre indivíduos que passaram — ou estão passando — pelo inferno de rastejar para sair do vício. A miséria não adora apenas companhia; muitas vezes, ele precisa desesperadamente disso. A última coisa que as pessoas que lutam contra a dependência de drogas ou álcool precisam sentir é sozinhas. Isso não quer dizer, porém, que essas histórias sempre funcionem dramaticamente. Depois de ver o arco típico, você geralmente sabe o que o espera: um personagem chega ao fundo do poço e começa a lenta subida para fora do buraco. E a subida lenta costuma ser a parte que inerentemente arrasta o filme para baixo.
A diretora Nora Fingscheidt evita esse problema principalmente em A Superação, uma adaptação das memórias de Amy Liptrot de 2016 sobre o retorno à fazenda de sua família em Orkney enquanto ela descobre como viver sem álcool. (O roteiro foi escrito por Fingscheidt e Liptrot, adaptado em parte de uma história que os dois co-escreveram com Daisy Lewis.) O truque, talvez, é que Fingscheidt não constrói tanto um enredo, mas deixa a história ditar seus próprios ritmos; seu estilo ligeiramente abstrato às vezes lembra o da deslumbrante cineasta escocesa Lynn Ramsay. O bater das ondas, a recriminação sombria das frias nuvens de carvão: para a jovem no centro desta história, Rona – interpretada, numa performance maravilhosamente matizada por Saoirse Ronan – estes são ao mesmo tempo marcadores do tempo e lembretes de que por vezes é necessário sair temporariamente do tempo, para dar à sua cabeça, coração e corpo a chance de voltarem a entrar em sintonia um com o outro. Esta é uma história sobre uma paisagem aparentemente implacável que na verdade retribui a cada minuto, quando Rona se reabre à sua linguagem varrida pelo vento.
A história começa 117 dias após a sobriedade de Rona. Ela voltou ao local onde cresceu, mas nada lá é igual – e, claro, ela também não é. A fazenda de ovelhas da família ainda é cuidada por seu pai recluso, Andrew (Stephen Dillane), que é bipolar; Rona fica com sua mãe, Annie (Saskia Reeves), que está separada de Andrew há muito tempo – ela encontrou a religião e parece pensar que é a resposta para Rona também.
Mas nada é tão fácil. Vemos flashbacks da antiga vida de Rona em Londres, onde morou por 10 anos. Ela é bióloga, inteligente e potencialmente bem-sucedida, mas o álcool atrapalhou sua vida e sua carreira. Seu parceiro em Londres, Daynin (Paapa Essiedu), claramente se preocupa profundamente com ela, mas não consegue competir com seu vício. Embora não vejamos em detalhes o momento em que ela atinge o fundo do poço, Fingscheidt nos dá uma noção bastante clara do que aconteceu: Rona sai cambaleando de um pub, tarde da noite, e aceita carona de um estranho; mais tarde, vemos seu rosto machucado e, mais significativamente, o olhar de derrota em seus olhos, uma derrota que também carrega uma centelha de determinação. Temos flashes de seu tempo na reabilitação. E então somos levados de volta a Orkney, onde Rona está lentamente se reconectando com o mundo que a formou. Nós a vemos dando à luz cordeiros, puxando-os, em toda a sua glória viscosa, de suas mães. Ela passa muito tempo olhando para o oceano frio e cinzento – vemos cabeças de focas balançando curiosamente na água. Na narração, Rona conta histórias míticas sobre essas focas e como elas às vezes assumem a forma de humanos. Há também uma história de origem em Orkney envolvendo uma serpente marinha gigante. Ela se pergunta em voz alta se algum dia poderá ser feliz sóbria. Ela está tateando o caminho para a resposta a essa pergunta.
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Também vemos flashbacks de sua infância e como os episódios maníacos de seu pai eram ao mesmo tempo estimulantes, assustadores e, especialmente neste canto do mundo, incompreensíveis. “Se você enlouquecer em Orkney, eles simplesmente te levam para fora”, ela explica com naturalidade. Fingscheidt tece todos esses elementos neste tecido grosso de filme, que evita muitos dos clichês das histórias de recuperação de vícios, ao mesmo tempo que reconhece as razões pelas quais esses clichês existem em primeiro lugar. Os episódios incômodos de dúvida, as recaídas, a confusão de terror e alegria que surge ao ter que conviver com seus próprios sentimentos cruéis: às vezes, as coisas que chamamos de clichês são, na verdade, apenas experiências compartilhadas.
Ronan pode carregar tudo e Fingscheidt sabe disso. Uma parte significativa da história se passa na pequena e remota ilha de Papay, onde Rona se retira para pensar em como ela poderia remodelar sua vida – e também se senta para registrar suas experiências e sentimentos. (A casinha que vemos no filme é aquela em que Liptrot escreveu seu livro, e algumas das pessoas que aparecem no filme são locais.) Ronan nos ajuda a sentir a forma e o peso desses longos períodos de solidão. Ela tem o tipo de rosto que parece estar sempre buscando a resposta para uma pergunta; nada é finito ou definitivo para ela. Como Rona, ela está diante de nós tanto como ser humano quanto como um conjunto de possibilidades em desenvolvimento. Nós a observamos persuadindo aqueles cordeiros a virem ao mundo, balançando-os pelas pernas para fazê-los respirar ou, quando necessário, levando suas vidas a um fim rápido e misericordioso. Com sua pele translúcida e olhos intensos e clarividentes, ela também parece recém-nascida, despreparada para o futuro, mas pronta para enfrentá-lo mesmo assim. A certa altura, um morador de Papay, ele próprio há muito tempo em recuperação, disse a ela: “Nunca é fácil. Fica menos difícil.” Podemos ver Rona simultaneamente levando essa verdade a sério e expondo-a, em todo o seu esplendor, diante de nós. Enquanto Ronan a interpreta, ela vive um dia de cada vez, um batimento cardíaco de cada vez. Os batimentos cardíacos e os dias se acumulam gradualmente. E de alguma forma, nosso pulso foi sincronizado com o dela.