Home Saúde Dois motins no Capitólio. Dois resultados muito diferentes.

Dois motins no Capitólio. Dois resultados muito diferentes.

Por Humberto Marchezini


Segunda-feira marca um ano desde que milhares de manifestantes de direita vestidos com as cores da bandeira brasileira invadiram o Congresso, o Supremo Tribunal e os gabinetes presidenciais do Brasil com uma fúria violenta e o objetivo de anular uma eleição.

Sábado marcou três anos desde que milhares de americanos fizeram praticamente a mesma coisa.

Foram dois ataques chocantes às duas maiores democracias do Hemisfério Ocidental, ambos transmitidos para todo o mundo e ambos motivados por presidentes que questionaram as suas derrotas eleitorais legítimas. Cada um representou um teste extraordinário à democracia do país e cada um levantou a questão de como uma sociedade profundamente polarizada avançaria na sequência de tal ataque.

Com o tempo, a resposta a essa pergunta torna-se clara: os ataques paralelos tiveram consequências quase opostas.

Nos Estados Unidos, o apoio à campanha de Donald J. Trump para retomar a Casa Branca está a aumentar, enquanto ele enquadra a sua derrota nas eleições de 2020 como a verdadeira insurreição e o dia 6 de Janeiro como “um belo dia”.

Ao mesmo tempo, o seu homólogo no Brasil, o antigo presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro, rapidamente desapareceu na irrelevância política. Seis meses depois de ter deixado o cargo no ano passado, as autoridades eleitorais proibiram-no de concorrer novamente até 2030, e muitos líderes de direita o evitaram.

Entre os cidadãos, as opiniões sobre os motins duplos – em 6 de janeiro de 2021 e 8 de janeiro de 2023 – também divergiram. Pesquisas recentes mostraram que 22 por cento dos americanos agora dizem que apoiam o ataque de 6 de janeiro, enquanto no Brasil, apenas 6 por cento apoiar os manifestantes de 8 de janeiro.

Então porque é que tem havido reações tão contrastantes a ameaças semelhantes? Investigadores e analistas apontam para uma multiplicidade de razões, incluindo os diferentes sistemas políticos, cenários mediáticos, histórias nacionais e respostas judiciais dos países, mas uma diferença destaca-se especialmente.

Os líderes da direita brasileira “aceitaram pública, clara e inequivocamente os resultados das eleições e fizeram exatamente o que os políticos democráticos deveriam fazer”, disse Steven Levitsky, professor de governo de Harvard e coautor do livro “How Democracies Die”, que estuda as democracias americana e brasileira. “Isso é muito diferente de como os republicanos responderam.”

Na noite seguinte ao motim de 8 de janeiro, o presidente de esquerda do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, marchou de braços dados na praça central do governo federal com governadores, líderes do Congresso e juízes de esquerda e de direita, numa demonstração de unidade contra o ataque.

Nas horas que se seguiram ao motim de 6 de Janeiro, alguns membros republicanos do Congresso votaram contra a certificação da vitória eleitoral do Presidente Biden e, desde então, os republicanos têm procurado cada vez mais reformular a insurreição como um acto patriótico – ou mesmo um trabalho interno da esquerda.

Ciro Nogueira, um político de direita que foi chefe de gabinete cessante de Bolsonaro e agora é o líder da minoria no Senado do Brasil, disse que a reação nos Estados Unidos o surpreendeu.

“Há um consenso no nosso país, entre a classe política, para condenar estes atos”, afirmou. “Acho realmente lamentável que uma parte dos políticos americanos aplaudir este tipo de protesto.”

Ele especulou que o Brasil repreendeu veementemente os manifestantes porque muitos brasileiros têm idade suficiente para se lembrar da violenta ditadura militar que governou o país de 1964 a 1985. “Os Estados Unidos não viveram uma ditadura, um período de autoritarismo”, disse ele. “Nunca queremos que isso volte ao nosso país.”

Os analistas também salientaram que a fragmentação política do Brasil – 20 partidos diferentes estão representados no Congresso – torna os políticos mais dispostos a confrontar-se uns aos outros e a expressar uma gama mais ampla de pontos de vista, enquanto os conservadores americanos estão em grande parte confinados ao Partido Republicano.

Ao mesmo tempo, observaram que a grande mídia está menos fragmentada no Brasil, o que, segundo eles, ajudou uma parcela mais ampla do público a concordar sobre um conjunto comum de fatos. Uma rede de notícias geralmente centrista, a Globo, tem uma parcela dominante de telespectadores, com classificações muitas vezes superiores às das quatro redes seguintes combinadas.

Mas há outra razão pela qual o Brasil rejeitou tão resolutamente o motim de 8 de Janeiro – um factor que alguns temem que possa representar uma ameaça não intencional às instituições do país. O Supremo Tribunal do Brasil expandiu o seu poder para investigar e processar pessoas que considera ameaças à democracia.

A abordagem ajudou a abafar as alegações de fraude em torno das eleições de 2022 no Brasil, quando um juiz do Supremo Tribunal em particular, Alexandre de Moraes, ordenou que as empresas de tecnologia retirassem publicações que espalhassem tais falsidades. Moraes disse que viu a desinformação online corroer a democracia em outros países e tem a intenção de não permitir que isso aconteça no Brasil.

Como resultado, os tribunais brasileiros ordenaram recentemente que as empresas de tecnologia retirassem contas a uma das taxas mais altas do mundo, de acordo com divulgações do Google e da Meta, proprietária do Instagram.

Moraes também supervisionou a investigação de 8 de janeiro. (Em alguns casos no Brasil, o papel dos juízes da Suprema Corte pode ser semelhante ao dos promotores e dos juízes.)

Um ano após o motim no Brasil, 1.350 pessoas foram acusadas e 30 pessoas foram condenadas, com penas que variam de 3 a 17 anos. Depois de três anos, cerca de 1.240 manifestantes de 6 de janeiro foram acusados ​​e 880 condenados ou declarados culpados. As sentenças variam de alguns dias a 22 anos.

Na semana passada, o Sr. Moraes deu uma série de entrevistas em que atacou manifestantes que eram réus em casos que ele ajudava a julgar, chamando-os de “covardes” e “pessoas doentes” que o ameaçaram e à sua família. Ele também disse que as ações tomadas pela Suprema Corte – um grupo bipartidário de 11 juízes – foram cruciais.

“Se não fosse a forte reação das instituições, não estaríamos conversando aqui hoje. O STF seria fechado e eu, como mostraram as investigações, não estaria aqui”, disse ele em uma entrevistaobservando que alguns manifestantes queriam matá-lo.

Trinta senadores conservadores no Brasil divulgaram uma carta na sexta-feira que condenavam os ataques de 8 de janeiro, mas questionavam o poder crescente da Suprema Corte. Especialistas jurídicos em todo o Brasil têm debatido se as medidas do tribunal são justificadas dada a ameaça – ou se constituem o seu próprio novo problema.

“Acho que há problemas com as ações do Supremo Tribunal Federal”, disse Emilio Peluso, professor de direito constitucional da Universidade Federal de Minas Gerais, no Brasil. “Mas acho que a Suprema Corte teve que dar uma resposta firme ao que aconteceu em 8 de janeiro.”

Moraes também liderou o tribunal eleitoral que votou em junho para impedir que Bolsonaro concorresse às próximas eleições presidenciais. Cinco dos sete juízes do tribunal decidiram que Bolsonaro abusou do seu poder quando, antes das eleições de 2022, atacou os sistemas de votação do Brasil num discurso transmitido pela televisão estatal.

Levitsky, professor de Harvard, disse que a abordagem do Brasil se assemelha à doutrina da “democracia militante” desenvolvida na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial para combater o fascismo, na qual o governo pode banir políticos considerados uma ameaça.

Os Estados Unidos preferiram deixar isso para os eleitores, embora os tribunais de todo o país estejam agora avaliando a elegibilidade de Trump, e espera-se que a Suprema Corte dos EUA acabe decidindo a questão.

À medida que o apoio político de Bolsonaro fracassou – e enquanto ele enfrenta uma série de investigações criminais, incluindo uma relacionada com 8 de janeiro – ele deixou de alegar ter sido vítima de fraude eleitoral.

Ao mesmo tempo, com o apoio de colegas republicanos, Trump intensificou as suas mentiras. Em um comício de campanha na sexta-feira, ele chamou os presos nas acusações de 6 de janeiro de “reféns” e afirmou falsamente que o movimento antifa de extrema esquerda e o FBI eram “liderando o ataque”no motim. “Vocês viram as mesmas pessoas que eu”, disse ele aos apoiadores.

Uma pesquisa no mês passado mostrou que um quarto dos americanos agora acreditam que os agentes do FBI “organizaram e encorajaram” o ataque de 6 de janeiro.

Para Levitsky, essa estatística ilustra o que os Estados Unidos podem aprender com o Brasil neste caso: “O que os líderes dizem e o que os líderes fazem é importante”.

Paulo Motoryn contribuiu com reportagem de Brasília.



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